Site Meter Projeto Modes - Encheu? Joga Fora!: Notas de um amor urbano

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Notas de um amor urbano

Ele era um desses rapazes que, aos sábados, com a barba por fazer, sobem ou descem a rua Augusta. Aos sábados quase sempre no início da noite, os óculos, meio tortos e o rosto um tanto amassado por baixo da barba crescida o faz, transparecer a noite mal ou bem dormidas. É provável que tenha enchido a cara na noite anterior, acabado de chorar ou qualquer coisa assim. Costumam usar jeans desbotados, tênis gastos, camisetas e, quando mais frio, algum agasalho de time de futebol. Quase sempre levam as mãos nos bolsos, o que torna impossível para os outros, notarem seus dedos amarelados pelo excesso de fumo. Eles olham para baixo, não como se tivessem medo de tropeçar nos solavancos freqüentes das calçadas da Augusta, mas como se não houvesse expectativas. Seguem atônicos, como se tanto fizesse dobrar à esquerda ou à direita, seguir em frente ou voltar atrás. Por serem como são, seguem sempre em frente, subindo ou descendo a rua Augusta. E por serem tão iguais, quem prestar atenção em algum deles, jamais saberá se são muitos ou apenas um. Um único rapaz: este, com a barba por fazer e mãos enfiadas no fundo dos bolsos, que agora, logo depois de cruzar o Miranda, começa a descer a rua Augusta em direção centro, no sábado à noite.
*
Ela era uma dessas moças que, aos sábados, com uma bolsa pendurada no ombro, sobem ou descem a rua Augusta. Aos sábados quase sempre à noite, com o rosto um tanto amassado e com olheiras que nem pensou em disfarçar com maquiagem, acabam por revelar mais do que imagina. E quem olhar com atenção perceberá que dormiu mal ou bem demais, que bebeu na noite anterior, acabou de chorar ou qualquer coisa assim, sem muita importância. Costumam, elas também, usar jeans desbotados, sapatos de salto baixo e alguma blusa de seda crepe. Essas moças que, não se sabe se pela maneira altiva como fingem não ouvir as gracinhas que alguns dizem, ou se pelo jeito firme de segurar a alça da bolsa com seus dedos de unhas sem pintura, ficam a espera de um súbito encontrão de alguém que arrebatasse a bolsa para depois rasgá-la num terreno baldio e, decepcionado, com o dinheiro escasso, uma agenda de poucos compromissos, bilhetes de metrô e algum livro de poesia, fugisse atrás de mais sorte. Essas moças não olham para baixo nem para cima: com passo decidido, olham direto para a frente, como se visualizassem além do horizonte um ponto escondido para esses outros que passam quase sempre sem vê-las. Talvez sejam tantas e, se realmente o são, tão parecidas que, se alguém do alto de uma janela no Conjunto Nacional olhasse para baixo e as visse agora, poderia pensar ver só uma. Uma única moça: esta, com a bolsa velha pendurada no ombro, que depois de cruzar o Miranda começa a descer a rua Augusta em direção aos centro no sábado à noite.
*
Mas já que o mundo, apesar de redondo, tem muitas esquinas, encontram-se esses dois, esses vários, em frente ao mesmo cinema e olham o mesmo cartaz. Love kills, love kills, ele repete baixinho, sem perceber a moça a seu lado. And this is my way, ela canta em pensamento, na versão de Frank Sinatra, não de Sid Vicious, sem perceber o rapaz ao seu lado. E talvez porque rapazes e moças como ele e ela aos sábados à noite raramente se enfiam pelos cinemas, já que preferem o álcool em excesso, os dois se encaminham para as entradas em arco do espaço Unibanco. Olharam calmamente o cartaz de Fellini e, depois, trocaram olhares:Ele sorriu para ela, sem ter o que dizer. Ela também sorriu para ele e completou:

-A augusta parece Las Vegas, não?
- O quê? - ele perguntou sem entender.
Ela apontou para trás:
- O ambiente, las Vegas brasileira..
Surpreso, e meio bobo, ele perguntou:
- E você já esteve lá?
- Nunca - ela sorriu outra vez. - Mas não é preciso. Deve ser bem assim, você não acha?
- O quê? - ele, que era meio lento, tornou a perguntar.
- O ambiente - ela suspirou.
- Parece Las Vegas.
Ele sorriu também outra vez.
E concordou:- Sim, é verdade. Parece...

Nesse momento talvez ele tenha pensado em oferecer um cigarro a ela, em perguntar se já tinha visto aquele filme ou alguma outra dessas coisas meio bestas, meio inocentes ou terrivelmente urgentes que se costuma dizer quando um desses rapazes e uma dessas moças encontram-se com razões sexuais ou não. Mas como ele era mesmo sempre um tanto lento, não perguntou coisa alguma, não fez convite nenhum. Nem ela. Que lenta não era, mas apenas distraída. Ela então sorriu pela terceira vez, e já de costas abanou de leve a mão abrindo os dedos, e continuou a descer a rua Augusta. Ele também sorriu pela terceira vez meio sem jeito como era seu jeito, enfiou as mãos ainda mais fundo nos bolsos, coçou a barba por fazer e resolveu descer a rua Augusta.

Uns cem metros além, por associação de idéias nem tão estranha assim, talvez um deles tenha olhado para trás procurando quem sabe algum vestígio, um resto qualquer um do outro pela rua Augusta escura de um sábado a noite.

Mas ambos já tinham sumido por esquinas de ladeiras súbitas e calçadas maltratadas. Ao redor deles, luzes amareladas e vermelhas, prostitutas que dançam e bêbados que cantam. Não seria surpresa se no próximo segundo surgisse uma briga ou alguém cheirando pó, “Sim, Las Vegas brasileira”, Talvez tenham pensado, embora, de certa forma, eles nunca tivessem estado lá.

7 comentários:

Luciano Costa disse...

Foda.

Momentos que poderiam ser como o encontro de duas estrelas acabam com desencontro e lembranças do que poderia ter sido e não foi.

Identifico-me.

Anônimo disse...

Nossa, deu até uma ressaca.
é incrível a capacidade que você tem de descrever situações.
Tudo que escreve, eu sinto como se fosse possível enxergar cada um dos personagens, cada uma das situações. e você sabe fazer isso.
você mesma disse que a gente sabe quando o texto é bom, quando ele parece que está lendo a gente, e não o inverso.

sim, seu texto é bom.

beijo.

Fernanda Doniani disse...

texto simples. real.
e muito foda.

posso guardar pra mim?

Nina Kobayashi disse...

"E no meio de tanta gente eu encontrei vc. Entre tanta gente chata, sem nenhuma graça, vc veio"

Às vezes está na sua frente e vc nao vê!
Às vezes está tão perto que vc não consegue ver!

Iso 25 disse...

vê-se claramente cada detalhe...
quem vive e ve por lá, de tanto ver nada repara...
tudo muito rico...
exceto talvez esse desconhecidos tickets de metrô rs...
bejo

Marina Cabral disse...

oportunidades perdidas.
oportunidades que eram pra ser perdidas.
de outro jeito não daria.

Anônimo disse...

Não sei se esse é um tipo de romance que eu queria ter vivido (mesmo achando romantico e poético)
mas sem dúvidas esse é um texto que eu me sentiria orgulha de ter escrito.
beijo,